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sábado, 16 de maio de 2020

Patimónio popular: O Tronco

Sendo o gado vacum, asinino e cavalar um auxiliar precioso para os trabalhos do campo, depressa o povo concluiu que lhes tinha de proteger os cascos, o que deu ao proliferar nas aldeias de um equipamento fundamental importância: o "Tronco" que servia para ferrar o gado do trabalho. 
O
Tronco de Soutocico, Arrabal, Leiria

O tronco tal como a própria designaçao indica, consistia numa estrutura de madeira, de quatro pilares obtidos através de troncos, dois deles com orifícios onde se fixava uma pequena armação em madeira, em forma de jugo, onde era metida a cabeça do animal quando vinha a ferrar. A estrutura cingia-lhe os movimentos, permitindo ao ferrador executar o seu trabalho, evitando coices e cornadas.
Houve dois em Forninhos. 
O mais antigo de que há memória era nos Olivais; o outro ficava na direcção do Picão, perto da escola velha (hoje Casa/Sede da Junta de Freguesia). 
Havia ali um largo com oliveiras e nesse largo fizeram o 2.º tronco, que servia todos os lavradores de Forninhos e de outras povoações, que quisessem vir ali limpar e proteger os cascos dos seus animais de trabalho. Ainda existia há uns anos.
O ferrador era o tio Belarmino do Barracão (já falecido), uma pessoa muito entendida em animais, com conhecimentos de veterinário popular, formado na universidade da vida, por isso chamado também sempre que algum animal doméstico sofria acidente ou tinha um achaque. Exemplo, quando as vacas se engasgavam com uma batata entalada na goela, lá vinha o tio Belarmino do Barracão...
Trabalhou nos dois troncos a "calçar" e cuidar dos animais dos nossos antepassados. 
Bem-haja!
Toda a gente conhece as ferraduras de burros e cavalos. Menos conhecidas são as ferraduras dos bois, chamadas canelos.
Cavalos, burros e machos, animais com casco único, levavam ferraduras, seguras com cravos que entravam a martelo. Já as vacas, animais de dois cascos, eram aplicados canelos, igualmente seguros por cravos.
Imobilizados os animais, o ferrador tirava a ferradura velha com uma grande turquês. Depois cortava com um formão um pouco do casco. Alisava o casco com uma grosa e aplicava-lhe a seguir com grandes marteladas uma nova ferradura, ajustada ao tamanho e unha do animal. Com um martelo espetava os cravos - uns pregos que eram enfiados em buracos da ferradura de modo oblíquo relativamente à pata. Depois cortava e limpava com uma grosa as pontas dos cravos que saiam do casco.
Existe uma expressão relacionada com o ofício de ferrador "dar uma no cravo e outra na ferradura" que significa dar um golpe certo e outro não, dizer duas coisas contraditórias.
Naquele tempo, nos animais sujeitos a muito trabalho, os cascos dianteiros tinham de ser ferrados de quinze em quinze dias, não só por trabalharem todo o santo dia, mas devido também ao esforço desses animais na tracção dos carros pelos caminhos pedregosos. Mas havia lavradores que não levavam ao tronco os seus animais com esta regularidade.
O meu pai disse-me que as conhecidas jarmelistas foram as primeiras vacas que o meu avô teve e se o tio Belarmino não viesse dentro de quinze dias a Forninhos o meu avô Cavaca ia ao tronco das Antas ou de Dornelas. Foi lá muitas vezes...
Como em quase todos os lares havia pelo menos um animal de tracção ou carga, o tempo de espera para ferrar os animais, chegava a ser um bom par de horas, ou mais...!
O que vale é que havia por perto tabernas onde podiam esperar pela sua vez enquanto toamavam uns copos e conversavam. Mas também podiam ficar a conversar entre si, perto do tronco. Os troncos de ferrar eram locais de convívio aonde acorria muita gente para contar e ouvir histórias e novidades.

Nota: Foi com a preciosa colaboração do meu pai: Samuel Cavaca, filho de um afamado lavrador de Forninhos: Zé Cavaca, que fiz este artigo sobre um "património menor", porém de uma funcionalidade e de um saber-fazer importantíssimo. 

10 comentários:

  1. Memórias de outros tempos, abençoado o povo que ainda tem quem as vá resgatando, como a autora deste blog que mais de uma década depois continua com tal atitude, pesquisa, estudo e acima de tudo memórias reais para deixar entre tantos este testemunho de algo que fez parte de uma aldeia.
    Coisas das aldeias, mais das nossas ou parecidas com as mesmas carências, o acudir ou tratar dos animais, tipo "estação de serviço" à altura sem alcatrão para romper os pneus mas sim os caminhos rochosos e escombrosos que rápidamente desgastavam e moíam as patas dos animais.
    Aí, vinha o senhor ferrador quase veterinário, é verdade, pronto para todo o serviço, tratava de um pouco de tudo e era esperado com ansiedade, quer pela pressa de quem tinha de levar o gado para cumprirem as jeiras, ou por algo de mal na saúde do animal.
    Forninhos era à altura uma aldeia de lavadrores e agricutores, uma terra abastada pela riqueza dos seus terrenos que depois das colheitas, ia comercializar pelas feiras, subindo montes e vales, quer em carroças, quer a cavalo.
    Um dia ouvi dizer que mais valor tem um par de ferraduras novas que umas botas novas nos pés...
    Tal como o outro, "uma no cravo, outra na ferradura".
    Tanta coisa para descobrir...



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    1. O Tronco faz parte do remoto mundo rural tal como outros "patrimónios menores" que existiram: moinhos, lavadouros, fontes...
      Veja-se o que é o lavadouro da Eira!
      Tudo vai ruir e cair no esquecimento por culpa nossa. As pessoas que dirigem instituições, podiam ajudar a preservar por mais tempo a memória de uma paisagem e dos seus usos, mas como não têm noção da importância destas estruturas nem se lembram de tal!
      Há 2 anos ainda se falou que Forninhos ia ter um museu vivo ao ar livre, mas foi "sol de pouca dura".
      Um dia não era cabonde!!
      Se calhar por este mesmo motivo, o Tronco foi esquecido.
      O Malhadinhas é que tinha razão "Raios partam o Governo mailos governados, raios partam tanto tributo com que a gente de bem tem de ustir para andar aí meia dúzia de figuröes, de costa direita, mais farófias que pitos calçudos!".

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  2. Um post muito interessante. Quando era menina, gostava de ver o ferrador tratar os cascos dos cavalos que havia na seca. O que não gostava e fugia sempre era do capador. Era ele a chegar e eu a fugir.
    Abraço e bom domingo e cuide-se

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    1. Obrigada Elvira.
      Forninhos tinha um mestre capador, o tio Armando Castanheira, sendo que de vez em quando de outras bandas aparecia um senhor gordo, que se fazia apresentar pelo toque da sua gaita. Coitados dos porcos, tal como as pessoas se calhar também já conheciam o som da tortura deles!
      Bom domingo!
      Abraço e boa saúde para si.

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  3. Cheguei a ver o de Forninhos perto da antiga escola, o último que vi, foi em Castelo de Vide há cerca de seis anos e a ferrar um cavalo.

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    1. Ainda há os que persistem em ter animais de carga e daí haver ainda Troncos e resistentes ferradores, tal qual esse que viste em Castelo de Vide.
      Outras terras, mesmo sem qualquer utilidade, preservam-nos por serem um importante testemunho da vida antiga.
      Em Forninhos como os tractores tomaram as tarefas dos animais o tronco de ferrar que ainda tiveste oportunidade de ver, passou à história, pelo menos, ninguém mais o viu, nem se sabe se ainda existe, mas o mais certo foi alguém ter reaproveitado a madeira para outro fim.
      É o que senpre por lá acontece, infelizmente!

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  4. Mais uma boa curiosidade de Forninhos: O tronco! Gostei de conhecer tanta coisa interessante que vc contou. Também da frase: “Dar uma no cravo e outra na ferradura.”
    Boa semana, Paula... Meu abraço...

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    1. Quando alguém não se quer comprometer, não defender um só lado, acaba por dar "uma no cravo e outra na ferradura", dizer duas coisas contraditórias.
      São tipo camaleão e costumam vencer na vida!
      Abraços!
      Boa semana.

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  5. Boa tarde Paula,
    Muito interessante. Não sabia que essa estrutura se chamava tronco!
    Dentro do barracão, que era bastante grande, lá da minha aldeia (conforme referi no outro blogue) decerto também haveria um, mas como nunca lá entrei não tenho lembranças. O que via era da rua, quando ali passava pela mão da minha mãe.
    Belas memórias que o seu pai lhe transmitiu.
    Um beijinho e uma boa semana, com saúde.
    Ailime

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    1. Boa tarde Ailime,
      Ferrador, foi uma profissão que eu não lembro fazer parte do dia a dia da aldeia. Cheguei ao tronco porque o ofício tinha muito em comum com o de ferreiro, profissão do meu trisavô. O último ferreiro (um neto - tio do XicoAlmeida) chegou a moldar ferraduras por encomenda do referido ferrador: Bernardino, do Barracão.
      Dito pelo meu pai, nem todos os ferreiros forjavam ferraduras, mas havia uma relação de cumplicidade entre os ferreiros e os ferradores.
      Depois do irmão do meu pai ter falecido repentinamente :( tenho-me aproveitado mais a memória do meu pai, confesso.
      Boa semana com saúde.
      Beijinho.

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