Naqueles invernos rigorosos, a aldeia era medonha. Não havia luz (electricidade) e toda a região ficava mergulhada em profundo silêncio e total escuridão, provocando medos e cuidados.
Foi numa dessas noites de breu que se passou aquela história em que o ti' Miguel se viu cercado por dois lobos.
"Uma noite", contava a minha avó Maria Lameira à minha mãe, "ainda tu não tinhas nascido, o meu ti' Miguel ia morrendo de medo".
Ela contava que o ti' Miguel era carpinteiro e a sua profissão fazia-o calcorrear as aldeias vizinhas. "Naquele dia tinha andado a trabalhar em Vila Cova e já noitinha meteu a pé pelas matas da Sabugem em direcção à Moradia. Mas antes de aí chegar, apareceram-lhe dois lobos; como o ti' Miguel não era homem de se ficar sacou duma navalha que trazia no bolso das calças e que ao abrir deu um estalido o que assustou os dois bichos que recuaram uns passos, ficando um de cada lado dele.
À entrada da Moradia colocaram-se à sua frente, ao que ele exclamou, fazendo estalar novamente a navalha:
- Adiante camaradas que ainda temos muito para andar!
E, como eles saíram do caminho o ti' Miguel pensou que ao entrar no povo da Moradia estava safo e por isso não se meteu dentro do forno que ainda tinha gente. Continuou...
Ao chegar à Portela, qual raio, saltam-lhe à frente, especados e a espumar, como que dizendo-lhe que dali não passava.
Entre o estalar da navalha, caixa das ferramentas abanada, nada, apenas recuaram um pouco quando voltou a gritar e aqui já mais temeroso:
- Adiante camaradas que ainda temos muito para andar!
Mas mais abaixo, ao chegar ao ribeiro (Pontinha) já o chicoteavam com o rabo nas pernas, tendo-se especado à sua frente, ali junto à agora casa do David e do Constantino e...mais uma vez apenas desandaram ao grito de:
- Adiante camaradas que ainda temos muito para andar!
Meteram pelo Cerrado em direcção ao Picão.
O carpinteiro entrou assim em Forninhos. Na altura tinha na sua entrada um barracão de madeira que era venda e taberna do ti' Penaverde, pai do ti ' Eduardo Craveiro. Tinha o candeeiro a petróleo acesso e alguns rapazes ainda jogavam às cartas.
Quando o homem viu o candeiro aceso, até ganhou uma alma nova e entrou de rompante.
Olham para ele espantados, pois o ti' Miguel estava sobocado, sem fala, meio em transe.
- Ó homem, o que é que há?
Mas o ti' Miguel nada conseguia relatar, só passado algum tempo lá conseguiu balbuciar:
-Dois lobos. São lobos que vieram atrás de mim. Rapazes, ide lá acima ao Picão e vereis!
Eles foram e viram, um cenário negro, dantesco e animalesco, com os dois lobos a lutar entre si, mordidos e ensanguentados. "Tinham perdido a presa."
O ti' Miguel nunca mais esqueceu o susto daquela noite nem o que lhe valeu para contar a estória.