Seguidores

domingo, 21 de março de 2021

O vento que é um pincha no crivo

Para saudar a Primavera, o Dia da Árvore e o Dia da Poesia, escolhi mais um "cheirinho" da literatura de Aquilino Ribeiro, desta vez do romance "A Casa Grande de Ramarigães", que descreve o nascimento da floresta, o pulmão do mundo! 
"O vento, que é um pincha-no-crivo, devasso e curioso penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista!
Precipitado tão de alto do pinheiro solitário, balouçou-se um instante e ensaiou um voo oblíquo. A meio caminho volteou, rodopiou, viu as nuvens ao largo, a terra em baixo e, saracoteando a fralda, desceu em espiral. Poisou em cima duma fraga, ligeiro como um tira-olhos. Mas novo pé-de-vento atirou com ele para a banda, quase de escantilhão, e a aleta, tomando-se de imprevisto fôlego, arrebatou-o para mais longe. Foi cair numa mancheia de terra, removida de fresco pelos roçadores do mato, e ali permaneceu à espera que pancada de água ou calcanhar de homem o mergulhasse no solo, dado que um pombo bravo o não avistasse e engolisse.
(...)

Do pinhão, que um pé-de-vento arrancou ao dormitório da pinha-mãe, e da bolota, que a ave deixou cair no solo, repetido o acto mil vezes, gerou-se a floresta. Acudiram os pássaros, os insectos, os roedores de toda a ordem a povoá-la. No seu solo abrigado e gordo nasceram as ervas, cuja semente boia nos céus ou espera à tez dos pousios a vez de germinar. De permeio desabrocharam cardos, que são a flor da amargura, e a abrótea, a diabelha, o esfondílio, flores humildes, por isso mesmo troféus de vitória. Vieram os lobos, os javalis, os zagais com os gados, a infinita criação rusticana. Faltava o senhor, meio fidalgo, meio patriarca, à moda do tempo."

AQUILINO RIBEIRO, A Casa Grande de Romarigães, I"

Que a Primavera traga esperança para todos de um bom Verão.

18 comentários:

  1. Que beleza,Paula! O vento e seu sopro que fez cair o pinhão da pi8nha mãe e assim tudo aconteceu. Linda leitura! beijos, ótima primavera! chica

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Verdade! No fundo a ideia é mostrar como pequenos lugares comuns e pequenos acontecimentos dão origem a algo grandioso como é uma floresta.
      Bjs, bom domingo

      Eliminar
  2. A grande lição deste texto, é que para começar uma floresta, primeiro há que plantar uma semente.
    Aqui, um pequeno excerto das mais belas páginas da literatura portuguesa em que nos deixamos embalar pela escrita rendilhada e navegando no seu conteúdo, sentimos um prazer imenso.
    Que bela escolha esta de um "Mestre" conhecedor da natureza como poucos, desde o Romance da Raposa numa Vida Sinuosa nas Terras do Demo em Quando os Lobos Uivam e que nos levam na sua espiritualidade, Ao Homem que Matou o Diabo.
    Era por ali nas serranias de Sernamcelhe que via as medranças de cada ano a renascer, era o ciclo da vida, do homem animais e plantas, era o tempo dos tempos, a primavera e os seus apelos como ficou famoso o dia em que se sentou na taverna Da Maria Gaga na Ponte do Abade e degustou as famosas trutas de escabeche...
    Porventura o maior romancista regional, deixou um legado tão grande no linguajar que ainda hoje, nas asasda ventania que nos deixa em sobressalto, lá vem aquele jeito tão rural que este está a pinchar no crivo, anda por ali aos saltos...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, esta é a grande lição deste texto...depois podem-se plantar mais.
      De resto, é como dizes, Aquilino levou longe o seu aldeanismo, o escritor Fernando Namora referia-se a Aquilino Ribeiro como "aquele jovem que trouxera a província para a cidade".

      Eliminar
  3. Boa tarde Paula,
    Um texto muito belo de Mestre Aquilino Ribeiro no seu Português tão rico e profundo como só ele sabia!
    Não conhecia esta obra e como gostei desta sementeira tão ao jeito de Aquilino.
    Muito obrigada pela bela partilha.
    Que seja para vós também uma esperançosa primavera e um verão mais tranquilo para todos nós.
    Beijinhos e boa semana.
    Ailime

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Boa tarde Ailime,
      Temos de recorrer muitas vezes ao Dicionário, mas Aquilino "no seu Português tão rico e profundo" transporta-nos sempre às nossas raízes, à nossa língua de ontem.
      Li o livro "A Casa Grande de Romarigães", uma história que começa no tempo dos Filipes, há muitos anos. Vale a pena ler esta obra de renome, que se encontra no primeiro lugar da lista de “Os 12 melhores livros portugueses dos últimos 100 anos”, segundo a lista realizada pela revista Estante (FNAC em 2019).
      Beijinhos e Bom Domingo de Ramos ao ritmo destes tempos covid...

      Eliminar
  4. Um belíssimo texto do grande Aquilino Ribeiro.
    Que Deus a oiça. Paula e que a Primavera seja realmente uma mãe amorosa para todos nós.
    Abraço, saúde e boa semana

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A ver vamos, Elvira! Hoje é no calendário o Dia de Ramos, antigamente diziam-nos que o ramo para ser verdadeiramente bento, tinha que ter as três espécies: oliveira, loureiro e alecrim!
      O alecrim e os loureiros já estão floridos, mas as oliveiras estão, nesta época, no seu verde calmo à espera do bons frutos...
      Um abraço.

      Eliminar
  5. Boa tarde Paula, parabéns pela excelente matéria. Cada vez aprendo um poco mais com você minha querida amiga.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada Luiz.
      Já alguém dizia "Um dia em que não aprenda não é dia nem é nada...".
      Bom domingo!

      Eliminar
  6. Com um texto bem escolhido a Primavera foi anunciada e muitíssimo abraçada... O vento apaziguador da viva estação!
    Bonita homenagem à Primavera, Árvore e Poesia!
    Com carinho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada Anete.
      O vento é um tanto virtual, mas com sentido.
      Bj e tenha por aí um ótimo Outono.

      Eliminar
  7. Boa noite de paz, querida amiga Paula!
    Que beleza termos uma Mãe natureza a nos salvaguardar e à própria Gaia.
    Muito interessante o que diz o escritor e não o conhecia.
    Sempre haverá pássaros, flores humildes e outros a amparar o habitat.
    Tenha dias abençoados!
    Beijinhos carinhosos e fraternos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bendita Natureza Rosélia!
      Também ali perto, por uma tarde fosca de Outubro, chegou um gaio que trazia no bico uma bolota...
      Falta aqui essa parte do gaio e da bolota, mas fica a promessa para uma certa manhã de Outono.
      Beijinhos e fique bem.

      Eliminar
  8. Boa tarde

    Lindo Post .
    Bom fim de semana para Forninhenses e não só .
    Na Primavera da Vida ..

    Eu não sou natural de Forninhos mas
    levei á escola de 1997 a 2006 dois netos de Forninhos , em Loures. Básica do Infantado e Escola Luis Sttau Monteiro . Todos os dias!!!
    Levei-os ainda no Berço a Forninhos e joguei á bola com eles no Páteo da Escola .......( a poucos metros da Igreja ) .
    Aquilo que vocês valorizam AQUI.
    A vossa Escola e o vosso BERÇO.
    A vossa Estória .
    Amar as nossas origens e dos nossos avós é também cultura. É o início da nossa nossa dignidade .
    Por isso gosto deste Blog .
    O trabalhão que por aqui vai.Há anos

    Desta forma homenageio também os Bons Embaixadores( as ) de Forninhos que sempre me receberam bem , nas vinte e tal vezes que lá fui.

    Tenho orgulho no m/ percurso e o meu nome escreve - se como fui registado quando nasci . Em 1965 .
    Em todo o lado por onde passo .
    Sou :

    Antonio Miguel Gouveia
    Neto de
    Francisco Lourenço
    e
    João de Gouveia .
    De
    Maria Flôr
    e
    Bela Ferreira .

    Com a idade vou chegando ás minhas conclusões: Além da nossa Infância a relação que tivermos com os nossos avós tornou-nos pessoas mais Felizes
    Com percursos mais equilibrados e reconfortantes .
    Com capacidade de nos reerguer .
    Reinventar. Resistir.
    Sem roubar nada a ninguém .
    Nem matéria nem sentimentos.
    No Século/Face e das redes sociais
    quando a Ciência e a Cultura precisa de ter visibilidade, noto e descubro
    cada vez mais gente a ter vergonha
    do seu nome de Família .
    Triste .


    Fiquem bem .
    Boa Primavera.
    Positivismo e Alegria .


    Abraço
    MG

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada.
      Fique bem também e viva os dias de primavera, com felicidade.
      Um abraço.

      Eliminar
  9. É realmente um texto rico de expressões que nos faz admirar a capacidade de escrever tão bem!!! 👏👏👏

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, temos aqui das mais belas páginas da literatura portuguesa!!
      Bjs

      Eliminar

Não guardes só para ti a tua opinião. Partilha-a com todos.