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sábado, 24 de novembro de 2018

A noite dos lobos

Naqueles invernos rigorosos, a aldeia era medonha. Não havia luz (electricidade) e toda a região ficava mergulhada em profundo silêncio e total escuridão, provocando medos e cuidados. 
Foi numa dessas noites de breu que se passou aquela história em que o ti' Miguel se viu cercado por dois lobos.


"Uma noite", contava a minha avó Maria Lameira à minha mãe, "ainda tu não tinhas nascido, o meu ti' Miguel ia morrendo de medo".
Ela contava que o ti' Miguel era carpinteiro e a sua profissão fazia-o calcorrear as aldeias vizinhas. "Naquele dia tinha andado a trabalhar em Vila Cova e já noitinha meteu a pé pelas matas da Sabugem em direcção à Moradia. Mas antes de aí chegar, apareceram-lhe dois lobos; como o ti' Miguel não era homem de se ficar sacou duma navalha que trazia no bolso das calças e que ao abrir deu um estalido o que assustou os dois bichos que recuaram uns passos, ficando um de cada lado dele.
À entrada da Moradia colocaram-se à sua frente, ao que ele exclamou, fazendo estalar novamente a navalha:
- Adiante camaradas que ainda temos muito para andar!
E, como eles saíram do caminho o ti' Miguel pensou que ao entrar no povo da Moradia estava safo e por isso não se meteu dentro do forno que ainda tinha gente. Continuou...
Ao chegar à Portela, qual raio, saltam-lhe à frente, especados e a espumar, como que dizendo-lhe que dali não passava.
Entre o estalar da navalha, caixa das ferramentas abanada, nada, apenas recuaram um pouco quando voltou a gritar e aqui já mais temeroso:
- Adiante camaradas que ainda temos muito para andar!
Mas mais abaixo, ao chegar ao ribeiro (Pontinha) já o chicoteavam com o rabo nas pernas, tendo-se especado à sua frente, ali junto à agora casa do David e do Constantino e...mais uma vez apenas desandaram ao grito de:
- Adiante camaradas que ainda temos muito para andar!
Meteram pelo Cerrado em direcção ao Picão.
O carpinteiro entrou assim em Forninhos. Na altura tinha na sua entrada um barracão de madeira que era venda e taberna do ti' Penaverde, pai do ti ' Eduardo Craveiro. Tinha o candeeiro a petróleo acesso e alguns  rapazes ainda jogavam às cartas. 
Quando o homem  viu o candeiro aceso, até ganhou uma alma nova e entrou de rompante.
Olham para ele espantados, pois o  ti' Miguel estava sobocado, sem fala, meio em transe.
- Ó homem, o que é que há?
Mas o ti' Miguel nada conseguia relatar, só passado algum tempo lá conseguiu balbuciar:
-Dois lobos. São lobos que  vieram atrás de mim. Rapazes,  ide lá acima ao Picão e vereis!
Eles foram e viram, um cenário negro, dantesco e animalesco, com os dois lobos a lutar entre si, mordidos e ensanguentados.  "Tinham perdido a presa."
O ti' Miguel nunca mais esqueceu o susto daquela noite nem o que lhe valeu para contar a estória.

23 comentários:

  1. Um susto e tanto. Inesquecível mesmo! Bah! abração,chica

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    1. Pudera!
      Foram assim "coisas" que moldaram as nossas gentes e as tornaram bravas.
      Abraço.

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  2. Um susto assim não se esquece o resto da vida.
    Abraço e bom domingo

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    1. Nem para ele, quem o viu assim assustado e ainda hoje para quem houve contar...
      Abraço.

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  3. OI XICO!
    VIM LER TEU CONTO DO QUAL GOSTEI MUITO, TAMBÉM JÁ ESTOU TE SEGUINDO.
    ABRÇS
    https://zilanicelia.blogspot.com/

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    1. Bem vinda e bem-haja.
      Tem aqui coisas escritas ao longo destes nove anos; contos, estórias e lendas, muito para conhecer desta pequena/grande aldeia que tem por nome Forninhos.
      Um abraço.

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  4. Mas que aventuramedonha!
    Bom domingo.
    Beijinhos

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    1. E agora que por aqui chove e com vento endiabrado, esta história de outrora, quase que parece estar presente e vivida.
      Beijinhos.

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  5. Um susto e tanto, inesquecível, como esquecer?!?
    Depois que passou o sufoco, que alívio, HEIN? Faço ideia, Xico...
    Gostei de encontrá-lo no Ciranda de Frases... Boa surpresa!
    Abçs aos dois...

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    1. Esse homem era tio da minha avó materna e nas raras vezes de "castigo", éramos "ameaçados" com estas matas povoadas por feras e magias estranhas.
      Mas que por ali aconteceram coisas estranhas e reais...
      Abraço.

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  6. Este texto tem pormenores deliciosos para a história de Forninhos. Parabéns Xico.

    1) Naqueles invernos rigorosos, sem luz, os humanos estavam todos (ou quase todos) em suas casas, de volta da lareira. Os mais velhos contavam estórias aos pequenitos. Muitas vezes, estórias medonhas. "A noite dos lobos", "As feiticeiras da mata da Sabugem" e similares eram o prato do dia: quer dizer, da noite. Os miúdos ficavam super assutados.

    2) O ti' Miguel, tio da ti' Maria Lameira era carpinteiro, mais um carpinteiro de Forninhos "a terra nos nossos avós", pois nascido com toda a certeza no Séc.XIX.

    3) O ti' Miguel vinha escoltado por dois lobos e pensava que ao entrar no povo da Moradia estava safo, por isso não se meteu dentro do forno que ainda tinha gente. Era mesmo assim. Mesmo não cozendo o forno à noite, as pessoas, os rapazes, juntavam-se nos fornos, aproveitando o quentinho que ali se sentia nas noites de inverno. As mulheres, só ali conversavam, conviviam, enquanto o pão cozia.

    3) O carpinteiro entrou na venda e taberna do ti' Penaverde que tinha o candeeiro a petróleo aceso e alguns rapazes ainda jogavam às cartas. Forninhos, há 150...100 anos, da Portela até ao Cerrado (hoje "gare do oriente") era um lugar totalmente desabitado, ainda assim tinha juventude a jogar às cartas, à noite, na taberna de madeira do pai do ti'Eduardo Craveiro!
    Tudo mudou, já não há juventude, nem de noite, nem de dia, os barracões em madeira com o tempo também desapareceram. É certo que não se trata de uma "Costa Nova", mas nem só em Aveiro havia palheiros em madeira.

    4) O "Adiante camaradas que ainda temos muito para andar" ficou para trás, mas podia ser o nosso lema.
    Continua...

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    1. Boa noite, Paula.
      O intuito do texto não tem por ambição a nossa história, mas apenas para memória futura de quem a tal aprouver e aproveitar.
      Os nomes citados não são de personagens fictícias nem romanceadas, era o nome dela e deles, que tantos ouvi contar mas que se perdem na memória dos tempos longos e sombrios, tal como as matas da Sabugem.
      A "personagem" Maria da Lameira, era a minha avó materna e morreu hà 55 anos, era eu apenas uma criança que mal guardava o que ouvia no borralho da fogueira, mas iam ficando uns respingos, não pelo "conto" deste caso, mas de outros porventura mais medonhos que os mais velhos do povo guardam, como se fosse pecado deles falar e os seus paridos ficarem envergonhados por deles falarem com os nomes próprios. Santa ignorância e vergonha pobre.
      Um pobre que não rouba, é o mais ricos dos homens, sem nada veio e assim se vai, não sendo uma alma negra que os incomode e aí sim, gentes havia com medos de magia e feitiçaria em desfavor.
      O Ti´Miguel, safou-se dos lobos com a sua valentia e mestria, não seria a primeira vez que os sentira "roçar" os calcanhares e nesse dia a coisa foi mais séria.
      Era de profissão, carpinteiro de nomeada e partia a dar cobro às encomendas de trabalho e sempre apeado na esperança de chegar a casa o mais cedo possível para acomodo e descanso e conhecia os lugares nos quais podia descansar um bocadito. Tal foi o que ele terá pensado ao chegar ao Lugar da Moradia: "agora vou enganar as bestas satânicas se pensam que fico por aqui no aconchego do forno e aquecer o corpo ao borralho do forno que ainda à pouco esteve a cozer". E continuou com a atribuliçao contada no texto, até a algo desaparecido, talvez a última estrutura comunitária da nossa terra, a taberna de madeira que mesmo a horas tardias servia de refêrencia para os mais novos. Dela não tenho registos, não sendo do ouvir falar.
      Se o tio da minha avó, tivesse à altura dos factos cinquenta anos, poderíamos situar este episódio e neste contexto, algo passado cerca de duzentos anos atrás.
      E como seria o tempo e o modo do ser deles...
      E quem, pergunto, bateria à porta destas tabernas abertas noite adentro, apenas mera diversão ou também o acoitar de bandidagem?
      Fica para contas de outro rosário.
      Sorte a do Ti´Miguel que escapou de boa, ou de boas...

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    2. A 9 de Outubro de 2013 publiquei uma foto bastante antiga. Sobre essa foto ainda pouco sabemos, apenas que retrata um grupo de amigos e que foi tirada na 1.ª metade do século passado. Tem de certeza mais de 60 anos...
      Quando pela 1.ª vez a vi, fiquei com curiosidade de saber quem eram os homens da foto e onde foi tirada. Hoje, digo, que talvez tenha sido tirada na taberna do ti'Penaverde.

      Vou colocá-la na "publicação em destaque".

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    3. Aqui trazes uma foto que de tão marcante,merecia local de destaque em qualquer lugar, houvesses coragem para tal.
      Primeiro pela história que carregam neles e suas profissões, sendo que uns partiram pelo mundo fora e outros ficaram por cá, mas aqui ainda eram novos, tal como dizes e estas gentes de outrora nao eram tacanhos ao ponto de não conviverem e se divertirem, afinal foram quem desafiou o "mal parecer" de desafiarem os bons costumes, com dignidade.
      Mal feito fora estarem "amortalhados" e por tal passarem bons bocados nas tabernas ou à porta delas, fossem do Ti´Penaverde ou de outras.
      Como se ouvia dizer em Forninhos, pareciam uns Pimpões!
      E eram...

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  7. Caro amigo Xico, gosto sempre de ler estas suas estórias com história! Sempre interessantes, nem sempre são atendidas com um comentário meu! Mas quero que saiba que não cai no esquecimento e lhe dedico, assim como à Paula, a minha estima de já alguns anos. Ainda não foi desta que nos encontrámos, mas está nos meus planos um encontro convosco.
    Um dia será!
    Beijinhos

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    1. Eu sei Teresinha, tal como a Senhora sabe que está no nosso coração.
      A gente cá vai continuando a partilhar coisas, antes ue estas acabem na boca de quem as diz.
      Beijinhos e até...

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  8. Mas que susto!!!
    Meu avô e meus pais contavam histórias semelhantes e eu adorava escutar!
    Bj e adorei ler

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    1. Agora gosto de ouvir, escrever e contar, mas antes...
      Aquilo fazia moléstia, mais ainda por ter visto lobos e ouvido por volta do pátio da casa.
      Claro que a gente tinha medo, mais ainda aquando nevava durante a noite e de manha, lá estavam marcadas as suas patas.
      Beijinho.

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  9. Sabe, Francisco.
    Esta etória foi-me contada pela minha Senhora mãe. Mais que uma vez, mas nela transparece auando tal conta, uma intensidade de anseios e medos, parecendo tal vivido. De vez em quando vou tentando que a repita, penso eu que pela sua idade, dali viesse mais um pormenor ou outro, mas ao longo do contar,vai-se retraíndo no "eu já te contei...". Apenas me resta dizer-lhe bem-haja.
    Um outro para si.

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  10. Oi Xico e Paula, saudades de vocês e das historias de Forninhos.
    Xico foi um belo de um susto, coitado, passou o maior vexame, mas o bom é que se salvou, e fico vivo pra contar a historia, amei.
    Beijos.

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    1. Olá Fátima!
      Quantas mais não haverão, algumas delas adormecidas em cabeças que já esquecem o presente, mas que lembram com precisão os tempos do seu crescimento!?!
      Beijos e bom domingo.

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  11. Boa tarde Xico,
    Só hoje chegando aqui para ver as novidades...;))!!
    Que susto não deve ter apanhado o ti Miguel!
    Eu só de ler fiquei com o coração bem apertadinho.
    As pessoas antigamente trabalhavam e sofriam muito, mas corajosas!
    Beijinhos e boa semana.
    Ailime

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