Pela segunda vez estou a usar este título, hoje com uma bela descrição de Aquilino Ribeiro in Aldeia - Terra, Gente e Bichos (págs. 65, 67, 71), onde fala do tempo de Páscoa.
"Nesse ledo clima de outrora, e até ainda durante a guerra, por toda a Quadragésima, as aldeias ouviam reboar as matracas a chamar os fiéis para a Via-Sacra. A um sinal tão áspero como estranho cada um montava o seu corcel fogoso e ala, fantasia. Como é que Deus se deixava matar por meia dúzia de safardanas?!(...).
Nesses dias de treva as janelas das casas, em observância com a pragmática, fechavam as portadas. o comércio aderia. O Senhor Pereira pesava o bacalhau em voz baixa, com gestos comedidos, e os caixeiros que tinham gravata preta punham-na. E como não, se à noite, no afogo das cerimónias quaresmais, se encontravam com as meninas e ia morrer um Deus?! Os altares estavam velados com crepes e lençarias pintadas, pois não seria decoroso que a jucunda graça da Senhora dos Remédios, o manto garrido do S. João, a estola sarapintada de estrelas de Santa Catarina continuassem a alegrar os olhos e a perfumar o mundo na hora lacrimosa. (...)
Abril quase no termo, antecipava-se em seu advento o sol estival. As rolas, o cuco e a poupa cantavam e recantavam no coruto dos pinheiros. De quando em quando o marantéu lançava sobre a natureza amodorrada o seu gorgeio vibrante, amarelo como ele, como o sol, como o fogo, como as flores mais plebeias dos prados. Os gaios pinchavam nas casticeiras, que se recobriam de rebentos primaveris, penugem verde-amarela, breve e imponderável como uma musselina, e tratavam com aqueles o provável despique:
- Viste o abade?
- Lá o vi, lá o vi.
- Com'ia vestido?
- Ia com'a mi.
- Comeste-lhe os figos?
- Pois comi, comi!
(...) Domingo de Páscoa, manhã alta, perpassava ao cabo da rua braçada rúbida de camélias. Uma, a mais vermelha, ia o Juiz da igreja entalá-la na cruz de prata de guizeiras entre a aspa e o braço do justiçado. E, assim, guarnecida, o senhor padre dava a beijar às famílias ajoelhadas Cristo e a Primavera:
- Aleluia! Aleluia!
(...)
Belo texto e tradições...Linda nova semana! beijos, chica
ResponderEliminarGosto muito da escrita do Aquilino Ribeiro, retrata muito bem as nossas gentes e tradições.
EliminarBeijos, tudo de bom...
Boa tarde Paula,
ResponderEliminarAquilino aqui nos mostra com os seus tão pormenorizados e ricos textos como era vivido o tempo de Quaresma, em tempos idos e de boa memória, a que a sua escrita dá vida.
Absolutamente belo o que acabei de ler e agradeço-lhe pelos excertos que partilhou.
Beijinhos,
Emília
Por vezes custa a compreender, mas Aquilino descreveu a aldeia e o aldeão do seu tempo como ninguém e nós, Ailime, temos de agradecer principalmente ao escritor pelo legado que nos deixou.
EliminarBeijinhos e um resto de dia bom!
Só o Mestre Aquilino nos podia transportar desta forma ÀQUELE TEMPO.
ResponderEliminarUm tempo nem assim tão distante que ainda há quem o lembre nas suas belas palavras escritas e lamentavelmente esquecidas as observâncias, pois eram estas que ditavam os modos nestes dias tristes, escuros e abnegados no constrangimento de mantos negros,
e almas carregadas de medos.
Logo viria a libertação, a passarada e cerejeiras em flor, cada qual
mais libertino na demanda do que eram.
Para trás, havia ficado o escuro das trevas, agora voltava a vida.
Cometo uma inconfidência de algo que não esqueço, o toque lùgrube das matracas. Tinha medo!
Ainda que na nossa terra se diga:
Eliminar- Viste lá o clero?
- Lá o vi, lá o vi...
Aquilino Ribeiro faz-nos sentir em casa, tais as semelhanças com a nossa aldeia.
Quanto às matracas, parece que não deixaram saudades, mas que o seu toque - trac-trac- era uma coisa sentida e vivida, era!
Olá, querida amiga Paula!
ResponderEliminarAntigamente a Quaresma tinha tanto respeito.
Particularmente, eu gosto das devoções antigas de se vivenciar o tempo litúrgico tão bonito.
Gostei de tudo que aqui li.
Tenha uma nova semana abençoada!
Beijinhos com carinho fraterno
Em pouco tempo fomos do 8 para o 80, digo, do 80 para o 8!!
ResponderEliminarMas tenho para mim que ao ressuscitar as nossas tradições religiosas quaresmais e pascais se chegue ao meio-termo.
Nem tudo está perdido...
Ainda temos a Via-Sacra aos domingos.
No domingo de Páscoa ainda se vê a camélia vermelha (ou outra flor) entalada na Cruz de prata.
Os donos dos cafés ainda encostam as portas quando passa a procissão, em sinal de respeito.
Beijinhos.
Bom Dia
ResponderEliminarBlog de Forninhos procurando sempre
Renovadas ondas de ar fresco , Cultura e
Aprendizagem .
Bom Domingo
Abraço
António Miguel Gouveia
Bom dia!
EliminarCada vez acho mais importantes as tradições e cultura dum povo.
Bom domingo
Abraço