Seguidores

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Maio, o mês das trovoadas

Eram de mais respeito e medos, as trovoadas algumas décadas atrás. Então Maio era terrível, o mês delas. 


Guardados por detrás da porta da cozinha, os ramos de oliveira, alecrim e loureiro benzidos no Dia de Ramos, iriam em situação de forte trovoada e no arreigar da fé e crença das tradições das pessoas, servir de protecção.  
A árvore da foto é uma oliveira situada num pequeno quintal da minha mãe frente à sua casa. Foi esventrada há muitos anos por um malvado raio que num ziguezaguear mortífero a atingiu e rasgou. Tinha eu sete anos de idade e em conversa pensamos aqui trazer a história deste dia que me marcou.
Curiosamente num dia em finais de Maio e de calor abafado, o tempo na sabedoria popular previa que "ela" nesse dia viesse, tal como veio, quase transformando o dia em noite. Em casa estava a minha avó Maria, a minha mãe Augusta e eu que sempre tapava a cabeça quando ouvia os trovões, se calhar por a minha mãe me contar que quando tinha a minha idade se metia dentro de uma saca de serapilheira e pedia à sua mãe para a levar para uma terra aonde não houvesse trovoadas.
Seguindo um ritual antigo, depressa se acendeu uma pequena fogueira e a minha avó ordenou à minha mãe que tapasse a aliança de casamento, já que os dedos com o trabalho do campo não eram fidalgos e o anel não iria sair. Podia atrair um raio. De detrás da porta tiraram um ramo benzido e pouco a pouco a minha avó ia deitando pedaços na fogueira enquanto rezava invocando a santa protectora:


 Santa Bárbara bendita
 Que no céu estais escrita
E na terra assinalada
Nosso Senhor te reme para bem longe
Lá para Castro Marinho
Onde não haja pão nem vinho
Nem mulher que páre menino
Livrai-nos desta trovoada

Ao lado desta oliveira, tinha o meu pai (que na altura do sucedido estava ausente) umas rimas de troncos de pinheiros e ramagens dos mesmos. Num repente imprevisto pela sua violência, o raio e trovão caem em simultâneo, "ela" estava ali mesmo por cima de nós e num ápice a casa começa a ser invadida por um fumo intenso, quase palpável de espesso que era. A madeira havia pegado fogo e apesar de molhada com tal intensidade que pensamos a casa estar a arder. Entre o esconder e sair para a rua, a minha avó de idade avançada, a minha mãe aflita e eu quase criança, alguém ouviu os nossos gritos, o Lúcio, não me esqueço, que acorreu e lá nos conseguimos arrastar para o páteo exterior da casa, enquanto gritava "acudam que há fogo"Tocou a rebate o sino e o povo acudiu em massa com o que tinha à mão, como era apanágio da entreajuda do povo de Forninhos.
Na semana passada estive lá e olhei para ela, a oliveira, começava a deitar flor e estava bonita. Gosto dela, apesar de aborrecido por não ter devolvido a relha metálica do arado que segundo a superstição tradicional, seria o que ia na ponta do raio e se enterrava na terra, mas que passados sete anos voltava à superfície.

20 comentários:

  1. Olá Chico, que grande susto esse, do raio e trovão! Felizmente foi só um susto, porque ficastes todos intactos e a oliveira resistiu até hoje.
    Bj

    ResponderEliminar
  2. Em conversa pensamos aqui trazer no mês das trovoadas – Maio - esta experiência que viste acontecer perto de ti, mas ainda assim aprendi algo que não sabia. Não sabia isso da relha do arado, que seria o que ia na ponta do raio e que passados 7 anos voltava à superfície!
    Muito se aprende aqui ;) e com o povo sabedor também, claro!
    Eu já não sou do tempo em que as mulheres ocultavam, os objectos de ouro, sou do tempo que havia electricidade e alguns electrodomésticos e se desligava tudo para não avariarem quando relampejava. Não me lembro nessa altura ter medo de trovoadas mesmo quando me contavam sobre uma ‘peste’ que caiu junto ao Lagar do Sr. Luisinho e que por pouco não atingiu o meu tio António Carau, que tinha um terreno perto do lagar e acho se acoitava debaixo de uma árvore, mas depois que ler o teu texto, como sempre muito bom, se tinha algum respeito por trovoadas, esse respeito aumentou agora.
    A respeito da protectora – Santa Bárbara - fiquei a pensar se adiantou ou não a reza. É que, por um lado, não morreu ninguém; por outro, não foi para longe, como o desejavam, vindo a causar dano na oliveira e queimou as rimas de troncos e ramagens de pinheiros de teu pai.

    ResponderEliminar
  3. Lindo ler e saber das tradições e Sta Bárbara certamente ajudou, uma vez que feridos não houve.Apenas o susto e a oliveira... Mas... Dos males, o menor! beijos,lindo MAIO, sem relâmpagos ou trovões! chica

    ResponderEliminar
  4. Puxa, trovoadas na Primavera, não é?! Um texto com história emocionante...
    Trovoadas e raios são mesmo assustadores...
    Um abraço grande p você e a Paula...

    Por aqui o friozinho e céu azul já estão bem presentes...

    ResponderEliminar
  5. Era de respeito as trovoadas que rasgavam o céu negro de um cinza que não apaziguava o espírito . E quando os raios caiam e fulminavam animais no descampado , metia do . Ir ao telefone era um perigo. Um dia em que atendi uma chamada era uma língua de fogo saindo pelo bucal em que fui cuspida com o telefone na mão . Ainda hoje me impressiona. Recordações ,Xico, que fazem a nossa história . Beijinhos querido amigo

    ResponderEliminar
  6. O Xico tem uma forma encantadora de contar estes episódios que agora nos parecem triviais, mas que na altura devem ter sido de uma aflição imensa! Daí que este blog mantenha esse interesse constante do que é física antiguidade e actualidade de uma aldeia, mas não só. Expõe também o humanismo das vivências que dão cor à vida de todos os lugares, porque senão seriam apenas paisagem parada no tempo.
    Recordo-me perfeitamente dessa oração a Sta Bárbara; a minha querida avó Augusta, nome de sua mãe, costumava rezá-la sempre que trovejava. Nem sei se a oração seria exactamente a mesma porque só me lembro da parte inicial, mas suponho que sim... Quanto ao ouro ter de ser tapado, disso nunca tinha ouvido falar!...:-)
    Os fenómenos naturais são todos dignos de respeito, mas neste caso, o susto já passou, e o que importa é que a oliveira, mesmo marcada para sempre, continua lá.
    Gostei muito de ler. Tanto o Xico (um excelente contista), como a Paula, escrevem muito bem e é sempre um prazer lê-los.
    xx

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Desde já agradeço a parte que me cabe :-)
      Enquanto houver temas que possam ter interesse para os leitores, visto ser essa a intenção da partilha, vamos "caminhando"...tentando fazer o que gostamos, mas quando chegar o dia em que não temos nada para dar...o blog acaba e se calhar até me socorro daquele excerto de um poema de Eugénio de Andrade:
      "Não temos já nada para dar.
      Dentro de ti não há nada que me peça água.
      O passado é inútil como um trapo.
      E já te disse: as palavras estão gastas.
      Adeus.".

      Eliminar
    2. Essa era boa, não faltava mais nada, acabar e entregar o oiro ao bandido. Seria uma festa de cravos pretos. Sei melhor que ninguém o que tens dado, trabalhado e sofrido, mas permite o calão: "tirem o cavalinho da chuva...".
      Não estás sózinha!!!

      "Ainda que os teus passos pareçam inúteis, vai abrindo caminhos,
      como a água que desce cantando da montanha. Outros te seguirão...
      (Saint-Exupéry)".

      Claro que não sabem quem é...

      Eliminar
  7. Um sabor e sortilégio imenso ouvir contar estórias da boca dos mais antigos, maior ainda quando nos são próximos, parecem mais autênticos e compreensíveis, naquele linguajar mais abrangente e aconchegado, tal como sobre este tema das trovoadas ouvi.
    Andava uma arrebanhada de gente a ceifar centeio para os lados da Moradia, apressados, quase fazendo voar a ceitoira que os cortava sob o risco de cortar o cereal e os próprios dedos. Ela, a trovoada, ameaçava e havia que despachar a ver se a ceifa acabava antes dela desabar. Um pouco acima havia uma corte onde se recolhiam as ovelhas e abrigo em caso de necessidade para as pessoas.
    Num repente, raios e trovões e a debandada sob o credo de "Santa Bárbara Bendita...", quando um raio fulmina o coruto de um pinheiro bravo, esgachando-o de alto a baixo. Entre os gritos de "ai Jesus que caíu ali uma peste", houve um senhor que em vez de se acolher entre as quatro paredes da corte do gado, preferiu ir a pé e a correr para Forninhos, apesar de o ditado popular dizer que uma peste (raio), nunca cai duas vezes no mesmo local.
    Por norma a seguir à trovoada, abate-se uma carga de água, que foi o que aconteceu quando este senhor estava a chegar à nossa aldeia e a intensidade da chuva era tal que teve de se abrigar por debaixo de uma figueira. Por pouco tempo, pois um fortíssimo raio sobre ela se abateu e ele ali morreu fulminado, parecendo que a dita o tinha escolhido como alvo e acertado.
    Coisas que dão que pensar...

    ResponderEliminar
  8. Mais um excelente comentário Xico, daqueles que já nos habituaste ;) e mais uma vez fiquei a pensar na eficácia da oração/reza que servia de suporte à fé e crença que as pessoas daquele tempo precisavam. Mas a trovoada se fosse bem forte, nem Santa Bárbara podia acudir, matava mesmo, como matou.
    Talvez fosse por só lembrarem Santa Bárbara quando troveja?

    ResponderEliminar
  9. Paula,que história de assustar,amiga! Levaram um susto com este incendio,não? Um excelente texto e histórias boas de escutar! bjs,

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu ainda não era nascida Anne, mas pelo que ouvi contar o incêndio afectou toda a população, de tal modo que toda a povoação se prontificou a acudir assim que tocou a rebate o sino da Igreja.
      Há 50 anos atrás, numa aldeia do interior, a sirene era o sino e os bombeiros o povo.
      Bjs**

      Eliminar
  10. O caminho está a tua espera, pé na estrada, coloque um sonho na alma,
    fé no coração e esperança na mochila,
    a vida se enche de novidades para os que se aventuram na
    viagem que conduz a verdadeira liberdade.
    A realização de um sonho depende de Deus e de nós confiarmos
    no Pai Celestial ,
    e da nossa luta na esperança da Vitória.
    Beijos carinhos um abençoado final de semana.
    Evanir.

    ResponderEliminar
  11. Bela história...Espectacular....
    Cumprimentos

    ResponderEliminar
  12. Diz um provérbio que “não há Maio sem trovões, nem moço sem calções”. Pois bem, depois dos dias frios de Abril, com chuva e granizo, de repetente, neste início de Maio os termómetros subiram e parece Verão o que faz lembrar um pouco os Maios do passado, os moços vestem calções pelo menos aqui, no litoral, e agora só faltam os trovões, para dar sentido a tal provérbio, mas o mês só ainda tem 3 dias…!
    Um bom fim de semana a todos.

    ResponderEliminar
  13. Anónimo5/03/2014

    La Plegaria a Sta Bárbara Bendita es igual que la que se reza aquí.
    Un gran relato personificado en esa oliveira.
    La Solidaridad de los del pueblo, ante la falta de medios, era ejemplar.
    Abraços.

    ResponderEliminar
  14. Oi Xico,
    eu sei bem o que é ter medo de trovoadas, ainda hoje tenho, rsrs, e quando criança, mais ainda.
    O raio fez um estrago na oliveira, mas ainda bem que ela escapou e está bem apesar da imensa cicatriz, sem falar no susto que foi dos grandes.
    Beijos!

    ResponderEliminar
  15. Sobre as trovoadas de há vários anos atrás, muito se poderia dizer, a inexistência de pára-raios, os medos reais e crendices e os malefícios do raios funestos.
    O raio que tinha na boca das pessoas também o nome de relâmpago que ao descarregar sobre a terra, e com estragos visíveis, as pessoas exclamavam "acolá caiu uma faisca", outros "foi uma peste...".
    Também se dizia que um incêndio provocado por uma "peste", não podia ser apagado com água pois ainda iria aumentar o incêndio, pois esta o iria alimentar ainda mais. Talvez o medo, respeito ou assim se ouvir contar ao longo de gerações, não sei...
    Deixem que acerca do que descrevi no texto, vos acrescente algo ao final deste momento que vivi e que a Paula em falar num silogismo perfeito que os bombeiros eram o povo, me fez relembrar.
    No dia em que isto aconteceu e poderia ter consequências nefastas, estava em Forninhos o meu tio António, irmão de meu pai a passar férias. A sua actividade profissional era bombeiro e se não incorro em erro, era à altura o sub-comandante dos bombeiros de Luanda, Angola.
    Ainda me parece vê-lo a dizer a gritar para que as pessoas que parassem de atirar água para as chamas pois pouco iria resultar. Pediu uma facha (facho) de palha do centeio, incendiou-a e atirou-a para dentro das chamas.
    Acreditem, o incêndio amainou e em pouco tempo se extinguiu. Dizia ele que este tipo de fogo tinha de ser atacado com fogo. O contra-fogo.
    Tantos que terão estórias, vividas ou ouvidas, pena que...
    Deixem que termine com uma curiosidade.
    Esta oliveira da foto tem rejuvenescido de um modo extraordinário depois de "castigada" meio século atrás. Ainda agora trouxe azeitonas curtidas (curadas) pela minha mãe, à sua maneira simples e sábia. Divinais.
    "Ah, azeitonas d'um raio!!!

    ResponderEliminar
  16. Boa noite Xico e Paula, bem verdade que em tempos idos as trovoadas eram muito temidas e respeitadas! Pena que essa oliveira fosse atingida e imagino o susto que não foi! !
    Graças a Deus que não houve feridos e a oliveira como que se revigorou!
    Beijihos e uma boa noite.
    Ailime

    ResponderEliminar
  17. Trovoada, respeito medos
    e beleza quando vista em seguranca, qual postal ilustrado gravado em fotografia. Vista cair sobre a serra ou sobre o mar, na seguranca do lar equipado de para raios, sera porventura sublime.
    Mas noutros tempos em que ela era dona e senhora, nem os animais escapavam.
    Ouvi que um lavrador que anos vinte andava com a sua junta de vacas a gradar a terra para a sementeira nas Aguas Benfeitas. Uma das vacas tinha um grande chocalho ao pescoco, que era com o seu tilintar que mantinha a outra direita no rego arado.
    A trovoada veio tao rapida que nem deu tempo para resguardar as vacas, apesar do frenesim do dono.
    O badalo atraiu o raio e de imediato ela caiu fulminada!
    Ainda bem que a minha oliveira, segurou as tripas, melhor, se segurou nas suas raizes e continua pujante.

    ResponderEliminar

Não guardes só para ti a tua opinião. Partilha-a com todos.