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terça-feira, 4 de setembro de 2018

Escanar o milho

Era um rancho de gentes, num céu aberto por aí fora... 


Setembro o milho amadurece, primeiro o temporão das terras secas, o branco, nas terras de centeeiro, que alternava ano a ano com o semear do centeio para quem tal queria ou não tivesse outro remédio.
Para lá das misturas de farinha do pão, tinha por si só o milagre das papas do ralão e as papas doces de leite e açúcar.
Chegando meados de Setembro, era o forte da colheita do milho de regadio, forte e majestoso com várias espigas, como que dizendo que crutas cortadas para o gado e junto à última espiga, os haviam tornado mais valentes.
Na véspera e entre amigos, o dono combinava com eles irem cortar o seu milho na Ribeira e claro ao amanhecer, sem cerimónias, afinal eram os mais chegados e por tal no desdejum, uns figos secos e aguardente, o resto ficaria para a piqueta lá por volta das dez da matina.
No caso do meu pai, o tio Armando Coelho, Carlos Bragança e tio Zé Cavaca. Gentes chegadas...
Outros houveram, mas eram pagos ao dia, bebidos e não comidos...
Chiava o carro das vacas, carregadinho até ao Carvalho da Cruz, depois seria a direito, mas havia volta não volta que encostar nas sombras para o descanso e beber.
Enfim chegados, na outrora lage agora coberta de alcatrão (bem haja a ignorância), era descarregada a carga e outras que viriam a seguir pelo mesmo caminho.
Ao anoitecer ja se adivinhava a azáfama como sendo dia festivo, desciam a ladeira em direção ao ribeiro dos moncões, com acomódos pelos ombros que a noite prometia alguma frescura, coisa natural.
A promessa não seria vã. Quem vinha para trabalhar, ansiava pelas brincadeiras que depois viriam, os caretos com mantas pela cabeça, cobiçavam as raparigas, a coberto daquela capuchinha e por vezes, muitas, o toque do realejo e mais forte o da concertina. No fim uma pequena arrelia, a maçaroca de milho preto, foi uma aldrabice, foi roubada tal como ele vencedor queria um beijo.
Mas as escanadas não ficavam por aqui, iam pelos campos abaixo para quem não tinha eiras.
Pela Gândara e Romeiros e eram feitas nos campos à luz de candeeiros a petróleo cantando pela noite dentro, cantando de todo o lado.
Uma paródia!  

Foto de Maria Fernanda Sousa.

18 comentários:

  1. Li ndo de ver, de viver e de recordar! Bjs chica

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    1. O que mais gostava e no antes, era regar o milho, e pé descalço, e sentir o picar das aboboreiras, depois ir para o rio apanhar peixes...belos tempos!

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  2. Belo texto.
    Eu ainda me lembro vividamente dessas actividades.
    Efectivamente, em tempos idos e por esta altura do ano -entrada do Outono- procedia-se à recolha das colheitas pelos agricultores. Entre estas, a colheita do milho. Este, depois de cortada a "bandeira" era cortado rente e depois escanado para secar (as espigas) ao sol antes de ser malhado em lages - dizemos lages - (onde já antes tinha sido malhado o centeio), mas tambem podia ser escanado no terreno onde o milho foi criado. Esta escanada parece-me que foi feita no próprio terreno.
    Não conheço as pessoas (creio que são do Lugar e não da Lameira), mas é uma foto encantadora. Vê-se os cestos de verga que se iam enchendo de espigas, vê-se que tanto os mais velhos, como os mais jovens participavam entusiasmados na escanada.
    Muita coisa mudou, hoje cada um escana o seu milho, quase sempre ainda no terreno, com as canas em pé (se calhar já sem esperança de encontrar a espiga preta), nada de monte na lage, a malha também é mais fácil porque feita com a máquina malhadeira.
    Obrigada à Maria Fernanda Sousa. Esta sua foto fez-nos reviver tempos de antigamente e não só, fez-me lembrar pessoas..a minha avó Coelha, a minha tia Júlia...

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    1. Prendo-me na palavra "bandeiras".
      Era exactamente esse o termo usado, juntamente com as crutas.
      As coisa tinham o seu tempo de maturação e curiosamente depois destas cortadas e por um desígnio um dia ou dois depois de estendidas a secar (oiro para os animais no inverno e por tal pagos ao facho) para alimentar o ganau nos dias agrestes da invernia, para substituir a erva dos lameiros cobertos primeiro das geadas e depois das neves e gelos.
      Na escanada, pequenos grupos tinham um pequeno cesto ou cesta que depois despejavam nos grandes canastros de vime que os homens iam descarregando na lage.Acho que a gente sempre disse laija, mas pronto.
      Certinho, é que eram os mesmos das vindimas e recebiam as espigas do mesmo modo que as uvas um mês antes...
      Um grande bem-haja a quem ainda permite partilhar vivências pessoais e nos torna rendidos a estas gentes da nossa terra.
      Isto sim, é partilha e tomara que outras Fernandas viessem!

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    2. Queria dizer que não dizemos "eiras".

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    3. Compreendi mas, afinal de onde vem o dito popular sobre aqueles que nada tinham e nada queriam de " sem eira nem beira?...).
      Porventura por tal trabalho dar dôr de costas...

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  3. Um texto pleno de poesia e beleza. Suponho que escanada seja aquilo que eu conheço como desfolhada, pois apesar de ir ao Priberam, não consegui descobrir o significado, mas pela foto parece-me uma desfolhada. Assisti a várias nos anos 50/60.
    Um abraço

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    1. Sim, a escanada é a desfolhada ou esfolhada ou descamisada.
      Abraço.

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  4. Um texto que me fez recuar na minha meninice!
    A minha aldeia já foi terra de milho e da eira dos meus avós ... tenho as melhores recordações!
    Bj e obrigada pela visita

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    1. Se recordar é viver, então que estes apegos se ergam bem mais alto nos bons momentos vividos, que as amarguras da vida.
      Nós, ainda tivemos a sorte de tais vivenciar e prestar testemunhos, mas os vindouros...
      Beijinhos.

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  5. Do milho só me lembro de minha avó Maria " Flôr " sentada num
    banco a abrir as espigas para pô-las ao sol , penduradas numa
    vara na melhor posição para o Sol , de manhã á noite , exercer
    a sua força e assim ...termos milho na mesa..!!
    Milho móido em pedra movida a água a 3 / 4 km de minha casa
    e onde com seis , oito anos , aprendi a regras comunitárias
    de esperar pela sua vez....
    Ano bom ..ano mau...ou seja, a natureza no milho e em tudo
    o resto dava-nos a sua Divina Fartura ou excassez....
    Em Forninhos assisti á labuta do milho....numa enorme pedra
    no terreno atrás da Igreja.

    Abr
    MG

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    1. Era assim amigo António, cada terra com seu uso no modo especial de tratar e aproveitar o que a terra tratada com suôr, dava.
      Forninhos foi uma terra farta em centeio pelas características das serranias envolventes e um micro-clima muito especial, o mesmo que proporcionava em lameiros verdejantes os milheirais. Havia ainda alguns recantos que eram "sagrados", o bocado de terra para semear meio alqueir de trigo.
      Os propósitos da sua moagem eram parecidos, mas o das farinhas e sua utilidade podiam divergir.
      O pão de centeio, era e condiz com o ditado "pão para a boca", o pão dos pobres, o milho valia mais dinheiro e era acarretado para as feiras, sobrando algum para em dias especiais se cozer o pão de milho e os restos para engordar as galinhas.
      O trigo. Fidalgo, tirando o que se guardava para a feitura das morcelas nas casas pobres ou remediadas, servia de remedeio para alguma necessidade na doença que acompanhava um caldo de galinha.
      Abraço.

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  6. Boa noite Xico,
    A sua narrativa sobre as escanadas, fez-me lembrar tempos de infância em que junto dos meus avós e família chegada se procedia à descamisada do milho, como se chamava na minha aldeia, habitualmente em noite de Lua Cheia.
    Tempos idos que sabe sempre bem recordar!
    Obrigada pela partilha tão rica de como tudo se processava em Forninhos.
    A foto é uma bela relíquia.
    Beijinhos,
    Ailime

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    1. Bem-haja, Ailime.
      Foram tempos, tempos foram neles escorregando até que quase se vão perdendo nas memórias.
      Os rituais ficam presos nos rostos que ainda vamos lembrando, como bocados de história...
      Dias atrás, "roubei" uma espiga num lameiro e trouxe comigo, quase na mesma devoção de um terço.
      Fiz bem ou mal?
      Apenas gosto de olhar para ela...

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  7. Parabéns pela belíssima narrativa poética. Parece que foi ontem este acontecido. Aqui tinha essas comemorações nas colheitas. Minha mãe fazia delicias para acompanhar o feito. Que saudades!
    Sinto falta das bolachas de farinha de milho que minha mãe fazia. Eu ajudava a moer. O tempo bom.
    Abraços e felicidades.

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    1. Todos temos.
      Montanhas de coisas boas para culminar os festejos da mãe-terra, agradecendo a fertilidade conseguida, a entrega, as lagrimas "suculentas", a esperança!
      No nosso modo rústico, saudavamos não a tradição, mas os costumes rudes, vinha para a mesa o que estava mais à mão...
      Èramos lavradores...
      Beijo.

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  8. Um texto cheio de relatos cativantes. A recompensa depois do trabalho é maravilhosa! Recordar é tão bom!!
    Um abraço p vocês...

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    1. Olá Anete, boa noite.
      Uma escanada sempre teve a sua singularidade.
      Talvez o texto peque por tal destrinça, pois e na semelhança de outros rituais antigos, já advindos de celtas, moiros e visigodos, tinham além de manter e perdurar no tempo os nossos costumes, o respeito entre vizinhos e amigos.
      Éram irmãos de uma vida comunitária, eram sementes iguais semeadas em lameiros, por tal é bom recordar, mas ainda viver, quase um milagre!
      Abraço.

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