Seguidores

sexta-feira, 15 de abril de 2016

SAUDADES DOS CEGOS PAPELISTAS

Para que nao morra definitivamente no esquecimento. 
Ainda vive na nossa aldeia quem se lembre dos folhetos vendidos e cantados por feiras e romarias. Eram os cegos que acompanhados por bandolim ou concertina, traziam e contavam histórias trágicas, verdadeiras ou inventadas que as aldeias tomavam como suas ou pelo menos parecidas e por tal relevavam nas suas cantorias... 


Ainda hoje se ouve, tal como ouvi na Páscoa a "Coitada da Maria Alice" cantada e como que chorada entre amigos numa romaria ou feira quase deserta, como que revivendo aqueles tempos do nosso triste fado.

"Coitada da Maria Alice
 Foi levada pela doidice
 Para a casa da desgraça
 Seus pais à procura dela
 Lá a viram numa janela
 A dar beijos a quem passa

 Um homem que era seu tio
 Nunca teve tal desvio
 De naquela casa entrar
 Ao ver a sua sobrinha
 No meio de tanta menina
 Nem um beijo lhe quis dar

 Sobrinha rica sobrinha
 Tão amada como eras
 Abandonaste os teus pais
 Mais te valeria a morte
 Do que andar pelos jornais

 Que fizeste aos teus vestidos
 Tão bonitos e compridos
 Um bocado lhe cortastes
 Foste viver para a viela
 Com tuas pernas à vela
 E teus pais abandonaste".

Curiosamente, cada terra guarda ainda estas cantorias a preceito conforme lhe convém aquela com que mais se identificavam e cantavam pelos campos, não sendo raro adaptarem letras de desvarios locais.
Estes cegos cancioneiros, acompanhados normalmente por mulher, e por vezes crianças...ou cão, não passavam pelas aldeias, por estas passavam os pobres pedintes.
Por tal, as gentes de Forninhos e outras como iguais, aquando iam vender os seus queijos, porcos e mais haveres às feiras circundantes de Aguiar, Fornos, Feira Nova, Castendo e  a extinta feira da Parola de Dornelas, tal como agora com o Seringador, não esqueciam esta literatura de cordel, os folhetos dos cegos.
Sem rádio nem televisão, o mundo vinha ali escrito numa desgraça infinita que depois cantados em ceifas ou vindimas, ficava virado ao avesso.
Mas com muito mais desgraças...

24 comentários:

  1. Lembro de um que aparecia lá na Telha, pelos anos cinquenta e que cantava a trágica história da Isaura. Creio que era mais ou menos assim

    Isaura estava à janela
    à janela debruçada
    passou lá um rapaz novo
    adeus minha namorada

    Não sou sua namorada
    eu não conheço o senhor
    o senhor é rapaz novo
    não sei o seu interior

    Isaura foi pró quintal
    e o malandro atrás dela
    deitou-lhe as mãos à cintura
    ao chão atirou com ela

    E o malvado do pai
    sua filha abandonou
    por ela cair num erro
    na triste vida a deitou

    Pais e mães que tenham filhos
    não os ensinais a ler
    deitam cartas ao correio
    deitam a vida a perder.

    Era bem menina ainda mas lembro que duas coisas me fizeram muita confusão e talvez daí o ter memorizado a cantilena.
    Primeiro que o pai abandonasse a filha por causa de um erro. Naquele tempo, para mim, um erro estava longe de ter o significado que tem na cantilena. Segundo que se dissesse aos pais para os filhos não aprenderem a ler. Eu tinha aprendido há pouco tempo e achava que ler era uma coisa mágica, que nos levava até onde a nossa imaginação não era capaz de ir.
    Um abraço e bom dim de semana

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bem haja pelo contributo, Elvira.
      Era uma desgraceira pegada que se soltava da garganta dos cegos que no quadro que formavam pelas feiras e afins, juntando a mulher ou garoto, sopravam na harmonica ou dedilhavam a rabeca para prender a atencao da "freguesia".
      Algumas quadras soltas do folheto e era um "ver se te avias..." a serem trocados por meia duzia de tostoes, ou nem tanto. O negocio era legal pois neles estava o carimbo de "visado pela censura" do estado novo.
      Assim se podia "encher" o imaginario das gentes do campo de mulheres abandonadas no altar e se matavam por amor, do coveiro que violava as campas para roubar as roupas dos falecidos, da mae demente que matava os filhos e os enterrava no quintal...
      O fado portugues. Nao sei se o seu primodio ou continuidade, mas os "media" actuais aperfilharam este genero!
      Beijo.

      Eliminar
  2. Que belo resgate esse! Sempre em nossas cidadezinhas tem pessoas assim e que gostam de cantar e contar... abração, lindo fds! chica

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E temos de resgatar, amiga Chica, para nao corrermos o risco de que o que de uma maneira ou outra, contribuiu para a cultura e moldar de um povo, se perca em definitivo.
      Curiosamente coisas morbidas mas por vezes cantadas com alegria em ranchos de camponeses, sem medos pois da sua vida eles sabiam...
      Abraco.

      Eliminar
  3. Nunca ouvi falar!
    Mas tenho uma tia com 93 anos que diz cantilenas do género!
    Hei_de investigar sobre o assunto aos mais velhos da aldeia!
    Obrigada pela partilha...bj

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sao precisamente os antigos que guardam as memorias mais puras e genuinas.
      Por aqui temos o habito de deles nos socorrermos quando os temas se prendem com a nossa comunidade e seus habitos ancestrais. tem um gosto mais "caseiro", mas real.
      Beijinho

      Eliminar
  4. Aquilino Ribeiro, também deixou escrito que os cegos sabiam trovas de todo o género, umas que faziam rir, outras chorar. Cantavam o caso do sapateiro que fora entregar a obra aos fregueses e à volta apanhara a mulher a cear com um frade, e "as bocas escancaravam-se até às orelhas e as risadas caíam das queixadas, estrepitosas como espadanas em cima do linho". Mas lá vinha a história do filho a quem a amiga pediu o coração da mãe, se queria dormir com ela, e "os olhos vidravam-se de lágrimas.".
    Vem de muito longe a memória dos cegos papelistas que, por mercados, feiras e romarias, apregoavam casos estranhos. Estranho é que "em Forninhos havia feiras..." (cf. se lê na pág. 109 da monografia) e os cegos papelistas não passavam por lá!!!
    Da minha lembrança pessoal, a única memória que guardo destas cantigas de cordel do ceguinho, é de ouvir o meu pai cantar a cantiga da coitada da Maria Alice.
    Nas cantigas há coisas, há gestos, que na nossa sociedade ainda não são vistas com bons olhos. Mas olhando para trás dá ideia que até eram os cegos que abriam os olhos aos aldeões!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Em Forninhos tendo havido feira, seria porventura a mae da Feira da Ladra, mas adiante...
      Facto certo, os cegos papelistas vendiam os folhetos com historias e estorias de generos diversos, tal como esta que o teu pai nos deu e esta que minutos atras a minha mae me contou.
      SEXTA FEIRA DA PAIXAO
      " Quinta e Sexta Feira Santa
      Ninguem deve trabalhar
      Que Deus mostrou nesse dia
      O Seu poder Divinal

      Um criado de servir
      Tinha grande devocao
      Foi obrigado a trabalhar
      Sexta Feira da Paixao

      O criado nesse dia
      Trabalhava com vergonha
      Apareceu na frente dele
      Uma surpresa medonha

      O terreno era enxuto
      Ali agua nao havia
      E quando os bois patinhavam
      O terreno se enchia

      E nesse mesmo momento
      Grande poço se formou
      Onde morreram os bois
      E o criado se salvou

      O criado chamou o patrao
      A correr muito aflito
      O patrao lhe respondeu
      Eu sem ver nao acredito

      O patrao as gargalhadas
      Seguia atras o criado
      Quando chegou ao local
      Ficou todo assustado

      Deitou as maos para o ceu
      E os joelhos para o chao
      Com a maior humildade
      Pedia a Deus perdao".

      Muito bom comentario e ainda bem que os "nossos" nao foram apanhados pela "cegueira" como por aqui demonstram com o seu contributo!

      Eliminar
    2. Diz o ditado popular que o maior cego é aquele que não quer ver...

      Eliminar
  5. Xico e Paula...
    Gosto de ouvir essas histórias cantadas! Com melodias, vamos "mergulhando" em detalhes de vidas e sentimentos...

    O meu abraço...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pena Anete, nao podermos transmitir as melodias que tais acompanham, pungentes mas, curiosamente cantadas em momentos de convivio e alegria por tais desgracas terem passado ao lado.
      Beijinho.

      Eliminar
  6. Boa noite Amigos,
    Muito interessante este artigo recordando essas histórias cantadas.
    Na minha aldeia passavam os pedintes a quem chamávamos os pobrezinhos e que muito me emocionavam. Ainda tenho bem presente a fisionomia de um deles.
    Sobre os cegos papelistas só me recordo de os ver já em Lisboa, embora e não sei se será a mesma situação o meu pai comprava os folhetos com os fados e levava-os para nós os cantarmos em grande algazarra bem pequeninas. Claro que falo de mim e das minhas irmãs.
    Gostei desta partilha que me fez recuar no tempo e como sempre recordar estórias antigas do nosso País, para que perdurem as memórias.
    Beijinhos a ambos.
    Bom domingo.
    Ailime

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Posso afirmar que o proposito deste tema, alem de aqui tentarmos preservar as coisas antigas que nos foram aculturando, tem por base uma homenagem aos intervenientes. Dos que cantavam e vendiam esta literatura de cordel e a quem ainda disto se lembra e faz o favor de connosco partilhar de viva voz.
      Porque?
      Foram cantigas que lhes marcaram a vida ao ponto de setenta ou oitenta anos depois, ainda tais saberem de cor e salteado, como estas que nos contaram a cantarolar.
      Quando assim acontece, vale a pena continuar a arrecadar coisas nossas para todos.
      Disso a Ailime, um exemplo pelo que guarda e partilha.
      Um bem haja e um beijinho nosso.

      Eliminar
  7. Todo o que é bom cristão,tem o dever pelo dever
    Guiar os tristes passos dos ceguinhos
    Dar pão a quem tem fome e defender
    Os timidos , fracos e os velhinhos.


    Dar abrigo , conforto, lume e cama
    Aos que dormem as noites nos portais
    Levantar os que tombam sobre a lama
    Neste Mundo de abismos infernais.


    Não maltratar os míseros indigentes
    Bem como os animais trabalhadores
    Porque além de prestáveis , são viventes
    Que sentem como nós suas dores.


    Não transpor o caminho da desonra
    Onde a morte se acoita quando calha
    Trabalhar, ser honrado , porque a honra
    Dá vigor e nobreza a quem trabalha.

    Nunca tocar a mãe pela mulher
    Que nos diz ter amor como ninguém
    Pois essa , só é nossa enquanto quer
    E a mãe , mesmo ao morrer , é sempre mãe .

    Francisco Santos
    "Fado Esmeraldinha"

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bem haja amigo Antonio.
      O fado da Esmeraldinha traz consigo sentimentos e honradez.
      O ceguinho, nao se miserabiliza, nem se queixa, porventura tem pena daqueles que vendo, nao ouvem o mundo que os rodeia. Nem o seu proprio, quanto mais do proximo.
      Estes cegos papelistas levavam com eles como modo de vida estes folhetos historicos que nao liam no papel e nem tal precisavam por tais saberem de cor...
      E era um trabalho honrado que ao mesmo chamava a atencao nas cantorias para os desmandos do mundo.
      Um abraco.

      Eliminar
    2. Xico Almeida

      Mais uma temática de que jamais ouvi falar...
      " Cegos Papelistas"...

      Boa semana para todos
      AMG

      Eliminar
  8. As pessoas de Forninhos gostavam de aprender as cantilenas dos cegos papelistas e uma ou outra ainda sobrevive na memória, como esta outra que ainda lhes puxa para cantar, vamos ver é por quanto tempo mais:

    P'ra onde vais ó Deolinda
    P'ra onde vais que eu também vou
    Vou regar a minha horta
    Foi o meu pai que me mandou

    Quando ela lá chegou
    malvado estava a esperá-la
    Deitou-lhe um braço por cima
    Ai, ai, ai, você vem p'ra me enganar

    Não venho p'ra te enganar
    Nem a ti nem a ninguém
    Se fôr da tua vontade
    Será da minha também

    Logo lhe deu um facada
    No lado do coração
    Agora vai dizer
    ó ladrão do teu irmão.

    Toma lá ainda mais outra
    Que tu ainda não estás morta
    Olha a pobre Deolinda
    Morreu ao portal da horta

    Deitou-lhe um lençol por cima
    P'ra ninguém a conhecer
    Olha a pobre Deolinda
    Onde ela veio morrer

    Onde ela veio morrer
    Onde ela veio parar
    Olha a pobre Deolinda
    Onde ela veio acabar.

    Era muita desgraça. Nem sei como gostavam de cantar estas cantigas nas ceifas e nas escanadas!!! Mas assim eram as histórias contadas e cantadas pela voz dos cegos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Dizes bem, "vamos ver por quanto tempo mais" para as memorias forninhenses nao acabem , como a coitada da Deolinda que morreu ao portal da horta.
      Seria uma desgraceira nao perpetuar os nossos que em parte se reviam nos costumes de tal cantarem de peito uns, de garganta outros, nas escanadas e ceifas do centeio ou corte de feno pelas serranias de S. Pedro.
      Como que os cegos lhes abrissem o caminho da labuta.
      As memoria jamais deviam morrer junto a uma porta tantas vezes franqueada e agora menosprezada.

      Eliminar
  9. Xico, de repente fez-se luz - percebi o porquê de " não ter dinheiro para mandar cantar um cego!"

    Muito engraçado ete texto.
    Beijo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pois...
      Mas era barato o que vendiam em folhetos e por tal ainda hoje se vai cantando o nosso fado...
      Beijo.

      Eliminar
  10. Acreditem que tenho um gozo pessoal tremendo em escrevinhar este tema, pela simples razao de ser genuino e real, relatos contados de viva voz de quem ainda recorda estes tempos tao distantes.
    Hoje alguem me ligou para me alertar que os cegos nao cantavam e vendiam apenas, rimas, mas tambem em outras versões, como era o caso de uma que Forninhos ainda se vai lembrando.
    O CRIADO E O AMO
    Antigamente, e narro quem tal me contou, os criados ajustavam ao ano para os patrões e um rapaz, moço ainda firmou e foi de ajuste, mas apenas a meio do primeiro dia ficou desencantado com o patrao, era mau e severo e por tal foi ter com ele.
    - Senhor meu amo, se ca agarro onze meses com vinte e nove dias dias e meio...
    - Ai moço, disse o patrao, levanta cedo, e faz alvoroço, para que digam os vizinhos que fulano tem bom moço.
    - Senhor, meu amo, disse o criado, trate-me bem e vista-me de bom pano para que digam os vizinhos que bom moço tem fulano.
    - Arre moço, quatro coisas quer o amo do criado que o serve, deitar tarde e levantar cedo, comer pouco e andar alegre.
    - Senhor, meu amo, deixo-lhe mais uma para serem cinco.
    Almoço cedo, jantar abreviado, a merenda com cuidado, a ceia ao por do sol, ir para a cama com quatro mantas e um lençol.
    - Ai moço, moço que domingo ja te mando...
    O criado respondeu
    - Olhe, Senhor meu amo, eu no sabado vou andando, para nao chorar vou cantando, pois estivesse aqui mais dois dias, levava as tripas vazias!

    Estes folhetos mesmo visados pela censura, traziam sabedoria.

    ResponderEliminar
  11. As histórias que eram vendidas pelos cegos e cantadas, eram realmente muito tristes. A desgraça era a grande notícia e ficava fazendo parte das histórias das terras, muitas vezes com adaptações às personagens de cada terra. É bem representativa a história da Alice e a da Sexta Feira da Paixão. E o cantar das histórias acaba por dar-lhes uma vivacidade que de outra forma não teriam, já que poucos saberiam ler.
    Adorei este tema. E ao ler os comentários do Xico, muito mais se aprende!
    Boa semana.
    xx

    ResponderEliminar
  12. Aquando vamos a aldeia, volta nao volta ainda ouvimos a pedido aos mais velhos que cantem estas "coisas" e os mais cantadores no final da janta, acedem com um sorriso.
    Curioso que sabem as letras de cor e salteado, mesmo que tenham passado mais de setenta ou oitenta anos quando as ouviram pela primeira vez.
    Magia de aldeias do interior...
    Obrigado Laura.
    Bjs.

    ResponderEliminar
  13. Muitíssimo obrigada pelo seu contributo. Não está a ser fácil encontrar muita desta historia por aí. A academia portuguesa chama-lhe LITERATURA de CORDEL, e de repente fui eu que me lembrei de procurar outros nomes, porque isto de nomes do povo... cada um é como cada terra lhe decidiu chamar. Um bem haja.

    ResponderEliminar

Não guardes só para ti a tua opinião. Partilha-a com todos.