Aquilino Ribeiro é um escritor que adoro, não só porque é natural da nossa região, mas porque tão bem retratou a terra que o viu nascer e exprimiu nos seus livros a verdade e a dureza regional, usando muitos termos nossos.
Deixo-vos um excerto genial sobre o presépio da aldeia (das Terras do Demo que englobavam mais ou menos os concelhos de Sernancelhe, Aguiar da Beira e Vila Nova de Paiva)...como ele amava e recordava o Natal em "O Livro do Menino Deus":
«Ia nascer o Menino Deus. Já a beata Clarinha mai'lo João Lájeas armavam a cabana, côlmo de palha, chão de musgo e uma manjedoira para a burra e para a novilha, que era mocha, salvo seja. Em guisa de paredes punham velhos chamalotes, e em tôrno do berço zagais com anhos às cavaleiras, magos de bornal farto e a rude malta dos caminhos. A Clara pernóstica todos os anos mandava cortar à Glorinhas, que tinha muito boas mãos, uma camisa nova para o Menino: cóscora de goma, colarinho à marialva, e ele que era mesmo um torrão de açúcar ria, ria, nem que lhe estivessem a fazer cócegas no umbigo. E assim fagueiro, nas sombras esvaentes, da missa do galo, à luz de vela poucos maiores que pirilampos, o dava a beijar o senhor padre, murmurando:
- Venite adoremus
Lá fora, lutando com as trevas, a fogueira enorme do adro deitava, nas colhidas do vento, labaredas que esanguentavam os muros e vinham laivar, como água-tinta duma profecia aziaga, a carne rósea do Menino. Todos tocavam com os beiços gretados pela intempérie os membros envernizados da imagem e na bandeja depunham o óbulo: um tostão novo, um vintém reluzente, melápios, uma pera morim. E rompia a cantoria estrídula, que os anjos pela certa acompanhavam no Céu em seus arrabis e sanfonas de prata:
Pastorinhos do deserto,
Levantai-vos que é dia;
Há muito que o sol é nado
No regaço de Maria.
Deixai cajado e manta,
Vinde todos a Belém
Adorar o Deus-Menino
Nos braços da Virgem-Mãe.
Leva arriba, pastorinhos
Leva arriba, maltesia,
Já lhe está a dar a mama
Sua mãe Virgem-Maria.»
Uma escolha belíssima!
ResponderEliminarHá tanto tempo que não lia nada dele!
A foto é linda.
Obrigada pela partilha e bj amigo
Pois, as livrarias deixaram de o ter nas estantes, mas eu aqui farei todas as propagandas que puder sobre este escritor beirão, até pela sua luta contra a ditadura.
EliminarA foto é do Cepo de Natal de 2010, em Forninhos. Essa noite esteve muito frio e havia poucas pessoas à volta do mesmo, mas o mais importante é manter vivas as tradições.
Bjos/bom fs.
Muito bonito este trecho de Aquilino.
ResponderEliminarFiquei curiosa porque não sei porquê tinha colocado esta aldeia, ou será vila? de Forninhos, entre beiras, e pelo post verifico que é no Minho ou Trás os Montes.
Tenho que ir ao mapa ver onde fica.
Abraço
Torga é que era de Trás Os Montes, que num dia inspirado chamou de "Reino Maravilhoso", já Aquilino chamou à terra onde nasceu (Sernancelhe/Beira Alta) e às terras irmãs que ficavam na sua vizinhança (Aguiar da Beira, concelho de que Forninhos (aldeia) faz parte) “Terras do Demo”.
EliminarPerto de Aguiar da Beira fica o Santuário da Senhora da Lapa, de que Aquilino também nunca se esqueceu!
Um abraço.
Lindo post, Paula!
ResponderEliminarGostei imenso do texto poético!!
Obrigada por Cirandar por lá com tanta beleza... Valeu!
Beijinhos e carinhos. Bom Fim de Semana!
Gosto de lendas :-)
EliminarBom fim de semana tb/Beijinhos.
Um excerto realmente excelente, e muito apropriado para esta altura do ano. Uma preciosidade de descrição, num vocabulário rico e muito específico. Gostei especialmente da forma como descreve a irradiação de luz através da fogueira no adro da igreja.
ResponderEliminarA foto também foi muito bem escolhida.
Grandioso Aquilino!
Obrigada, Paula. Belo post.
xx
Bem, ainda faltam alguns dias para o Natal, mas como é nesta altura do ano que faço o presépio e não é certo Jesus ter nascido no dia 25 de Dezembro, aproveitei o excerto do Livro do Menino Deus para recordar o Natal numa aldeia sem electricidade. Eu para além da fogueira do adro da igreja (em Forninhos dizemos Cepo) gostei também muito da descrição do beijar do Menino na Missa do Galo. Em Forninhos ainda é mais ou menos igual, quer dizer, já não temos a missa do galo, mas temos missa da manhã do dia 25 de Dezembro, com a Adoração ao Menino, onde todos beijam os membros da imagem, cantam cânticos de Natal e à saída na bandeja deixamos pelo menos um euro.
EliminarO vocabulário de Aquilino é único! Há quem ache que inventou muitos termos, mas eu não acho, acredito que tudo o que escreveu aprendeu convivendo com a gente beirã do seu tempo.
Obrigada Laura.
Bom fim de Semana/Bj**
Tens razão em relação ao vocabulário de Aquilino; talvez sejam mesmo regionalismos.
Eliminarxx
Belíssimo excerto em sintonia com a época festiva que se aproxima.
ResponderEliminarAdorei os versos da canção, pois conheço a versão comum.
Beijinhos.
De Natal - e tem a ver com o que Aquilino diz - gosto muito do "Cristãos Alegria":
EliminarCristãos, alegria que nasceu Jesus;
A Virgem Maria no-lo deu a luz.
Jesus! Jesus! Saudemos Jesus.
Jesus! Jesus! Saudemos Jesus.
Que meiga alegria/Nos traz este dia/De Jesus Natal!
Não há neste mundo/Prazer tão jocundo/que lhe seja igual.
Os Anjos nos ares/ Em ledos cantares/ Anunciam paz!
Oh, que dom divino!/E um Deus Menino/É quem no-la traz.
De todo o rebanho/O mais lindo anho/Lhe leva o pastor
A mais rica prenda/Que Jesus pretenda/É o nosso amor!
Beijinhos.
"...Lá fora, lutando com as trevas, a fogueira enorme do adro deitava, nas colhidas do vento, labaredas...".
ResponderEliminarConfesso ser um seguidor do Mestre Aquilino e porventura suspeito aquando me entrego de alma aos costumes deste nosso linguajar.
Tem aquele dom tocante que toda a gente desta Beira, mesmo os menos letrada percebe. Ate os mais cultos se deslumbram pelo sentimento que partilha desta forma, falta saber se sentidos, pois como ele dizia (ouvi), havia que cheirar um punhado de terra e nele ver o rosto de entre tanta coisa, uma ovelha mocha...
Desabafos dele, mas que a mim tocam neste enredo em que o texto nos desafia, no situar de um palco com quase igual singularidade como o descrito, modos, costumes que passado quase um seculo se vao perdendo.
Basta apenas um pequeno "rasgo" e trazer esta estoria para a realidade, penso eu!
Porventura o meu humilde contributo para a minha terra. A Igreja tem um adro grande, airoso e bonito, claro que a grande tilia antiga morreu, aquela onde se faziam na sua sombra teatros, o rancho bailava e o arrematar das oferendas se fazia...
Tudo se foi indo, mas nao morreu de todo!
Seria lindo que aquela fogueira de Natal ali ficasse ardendo durante toda a quadra no adro da nossa Igreja, o mesmo que fica no caminho da Missa, do Centro e dos Funerais.
Traria uma perspectiva diferente, a da vida!
E como seria bonito depois da missa do galo ouvir o padre dizer.
- Venite adoremus
Basta tal querer!
'Olha' Xico quando fiz "A Missa do Galo" que ilustrei com um postal circulado em Dezembro de 1942, por reportar um tempo em que as famílias iam para a Igreja a fim de assistir à missa do galo, disseram-me que em Forninhos no regresso a casa cantavam canções de Natal. E, depois da passagem pelo Cepo, que se fazia no largo da fonte (da Lameira) aqueles que regressavam aos lares comiam mais umas filhóses antes de se deitarem. Os mais farristas, ficavam no Cepo e comiam umas galinhas, pela madrugada, como bem sabes.
EliminarAgora fazem-no na Lameira e eu acho bem! As pessoas já não vão até ao Cepo como iam antes, portanto, se o fizerem no adro da igreja menos gente vai até lá. Eu acho!
Sabes que o tamanho e o brilho que se lhe dá, sempre dependeu da vontade do povo, que sempre foi unido e a sensação que se criava era que todos nos podíamos aquecer, hoje infelizmente não é assim, parece que só uns é que se podem aquecer ou participar!
Missa do Galo? Eu sequer tenho recordações da Missa do Galo, creio que nos anos 70 já se não celebrava na nossa paróquia, mas que era bonito ouvir o padre dizer "Venite adoremus" depois da missa, era!
Quando dizes que até gente menos letrada percebe Aquilino, concordo. Quem tem amor pela sua terra e valoriza a ruralidade, o linguajar, compreende bem a sua prosa.
Excelente Post !!
ResponderEliminarParabéns !
Abr
MG
Obrigada.
EliminarAquilino é um Homem (assim mesmo com letra maiúscula) de quem todo Portugal se deve orgulhar!
Um abraço meu.
Para mim a noite da magia.
ResponderEliminarConsoada em familia, Missa do Galo e pela noite adentro, o Cepo.
A Consoada vai mantendo os costumes de outrora desta gente das beiras que nao dispensa o bom bacalhau, couve tenra e bom vinho. Para os mais velhos, as "modernices" das guloseimas apenas enfeitam a mesa.
Quando nao nevava, a geada botava figura na sua brancura e no caminho para a igreja para assistir a Missa do Galo, era uma romaria de gentes, homens encolhidas nas samarras, chapeus pretos bem puxados que por debaixo se aqueciam com ceroulas rudes mas quentes, a estrear, compradas na Feira Nova. Elas com saiotes interiores de flanela e xaile pela cabeca e assim se encontravam frente da igreja vindos das ruelas circundantes da aldeia, tiritando sob o frio de rachar, melhor, um frio dos diabos!
Sempre e nesta noite a igreja ficava apinhada e pelo calor desta comunhao de fe e tamanho ajuntamento, o calor ia paulatinamente aquecendo os corpos.
Momento supremo o "Venite adoremus". Recordo as lagrimas felizes e espontaneas dos presentes, o Sr. padre e sacristao, felizes e os odores que pairavam no ar,como que estivessemos na Gruta de Belem com ouro incenso e mirra.
Comovente o beijo ao menino que iria explodir e extravazar
ao sair pela porta da sacristia findo o acto solene.
Grandioso o modo em como depois aquela gente indiferente ao frio, cantava pelas ruas com uma felicidade imensa e a plenos pulmoes,
"Cristãos alegria que nasceu Jesus
A Virgem Maria no-lo deu a luz
Jesus, Jesus saudemos Jesus
Jesus, Jesus saudemos Jesus
Que grande alegria nos traz este dia
De Jesus Natal
Não há neste Mundo prazer tão profundo
Que nascesse igual
Os Anjos nos ares prendem-nos cantares
Anunciam paz
Ao clamor Divino e o Deus menino
E quem no-lo traz".
O Cepo ficaria pela noite dentro, alimentado ate ao dia de Reis.
Aqui eram os mais novos quem "mandava" com as suas "partidas" bem pregadas e por vezes tao recambolescas que ficaram para a historia da nossa aldeia, esta que bem se enquadra nas Terras do Demo!
Obrigada Xico por trazeres à memória estas coisas!
EliminarEu não me lembro da Missa do Galo, das cantorias pelas ruas e do Cepo se aguentar até ao Dia de Reis, mas lembro de que a noite do dia 24 parecia não passar tal era a vontade de ver as prendas no sapatinho no dia 25, de manhãzinha. Acreditava mesmo que era o Menino Jesus quem lá metia as prendas.
Aquilo que eu lembro de todos os natais que passei em Forninhos, e isto que vou dizer pode até parece estranho, é que na nossa aldeia não se dá muita importância ao dia 24. Acho que em Forninhos vivem mais o dia 25 do que o dia 24, mas quando havia a Missa do Galo imagino (só imagino) que devia ser bem diferente!
"..Era uma romaria de gentes, homens encolhidos nas samarras, chapeus pretos bem puxados que por debaixo se aqueciam com ceroulas rudes mas quentes..."
Eliminar".. Elas com saiotes interiores de flanela e xaile pela cabeça e assim se encontravam frente da igreja
vindos das ruelas circundantes da aldeia..."
Bonito de mais !!
Bonito de " morrer " . Parabéns !!! Muito sérios !!
Verdadeiros !!
Devido á distância do " meu lugar " á igreja matriz da Paróquia, São Gonçalo , a " Missa do Galo", fazia-se numa improvisada capela , jamais terminada,
muito perto da casa de meus pais !! Da " Boa Esperança" de seu nome. Poucos arriscavam descer a encosta , pela noite , porque depois da Missa subir mais de 5 Kms não estava ao alcance de todos e nem todos tinham carro " naquele tempo" !!
Hoje será diferente ...passaram 20 anos !!??
Nota. Estou triste. Morreu um dos pilares do prédio onde vivo . Sr Garcia , a roçar os 90 . Era seu convidado, de vez em qdo, para as sua " adega" lá nas arrecadaçôes. Perdi uma referência de resistência nesta etapa da m/ vida ... Paz á sua alma !!
Renovados votos de BOM NATAL
Abr
MG
Bom dia Paula e Xico,
ResponderEliminarBelíssimo texto de Aquilino tão a propósito nesta época do ano!
O poema e a foto completam de forma brilhante este excelente texto que a Paula teve a feliz ideia de partilhar.
Obrigada.
Beijinhos e bom domingo para ambos.
Ailime
Ainda pensei inserir uma imagem a beijar o Menino, mas a qualidade das minhas fotos não é a melhor, então optei pela imagem do Cêpo (assim mesmo: Cêpo, porque ninguém diz "madeiro abrasado", quando muito dizemos: Cêpo de Natal). Para melhor entendimento vide a pág. 109, parágrafo 5º, da "monografia" de "Forninhos, a terra dos nossos avós. Obrigada.
EliminarBjos/Boa semana.
Bom dia Paula, o termo cêpo tb se utiliza na minha aldeia. Só me faltou acrescentar que uma antiga professora nos dizia nas aulas de Português: Aquilino sempre com o Dicionário por perto;)) dada a riqueza da sua linguagem nativa que o Xico tb utiliza e muito bem. Bjs cont. de boa semana.
EliminarTambém gosto bastante de Aquilino Ribeiro que é mais um dos nossos grandes escritores que não são divulgados, até parece que o querem esquecer.
ResponderEliminarUm abraço e boa semana.
É verdade, Aquilino é hoje um escritor esquecido e fora de moda.
Eliminar"O seu tempo já não é deste tempo, sobretudo quando se percebe que o facto de ter passado de moda tem a ver, não tanto com a qualidade da escrita ou a originalidade dos temas, mas sobretudo com a desvalorização da ruralidade num imaginário português que se quer atribuir a si próprio um estatuto cada vez mais urbano".
Texto do Expresso de 27 de Maio de 2013.
Abraço.
Uma prenda de Natal para os mentores deste blog:
ResponderEliminar" O Livro de Cozinha de Apício "
de Inês de Ornellas e Castro ...
Á vossa dimensão !!
Os Romanos eram vegetarianos ??
In Antena 1
Abr
MG
Eram 'quase vegetarianos', diz-se que se alimentavam à base de cereais e vegetais.
EliminarMas parecer ser um livro de cozinha bem interessante. Obrigada pela sugestão.
Abr./Boa semana.